sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO GERAL POR
MILITARES ESTADUAIS – CASO HIPOTÉTICO DO CEARÁ



JUAREZ GOMES NUNES JUNIOR

Introdução

A vida castrense[1] é contornada por diversos regramentos que a diferencia das demais classes de servidores públicos.

Saliente-se que tais diferenças podem ser percebidas sem maiores esforços. Os militares estaduais receberam tratamento próprio no texto constitucional e estão sujeitos às tenazes de um ordenamento jurídico-penal e processual penal específico, ou seja, o Código Penal Militar[2] e o Código de Processo Penal Militar[3]. Além dessas, existem outras características que os tornam sujeitos de direitos e deveres outros.

Cumpre, ainda, esse papel de tratá-los de modo ímpar os comandos advindos das normas estritamente administrativas, como o Estatuto dos Militares Estaduais[4] e o seu Código Disciplinar[5].

Em estreita visão mecanicista do direito, esses dispositivos legais se poderiam tornar impróprios ao finalismo buscado por sua objetividade jurídica. Tornando essa categoria profissional arredia ao seu almejado crescimento intelectual multidisciplinar. O que implicaria reduzir indevidamente o alcance sistêmico desse universo normativo, impedindo, por via reflexiva, a abertura de espírito proveniente do conhecimento de outras áreas.

Assim, restar-lhe-ia apenas absorver e multiplicar o conhecimento que efetivamente for útil e convier ao labor castrense ou policial.

A evolução cultural é presente. A continuar esse entendimento coberto com uma densa camada de gesso, os militares estarão fadados à condição de meros “figurantes” em uma peça teatral (evolução) que, encenada sob ângulos mais evoluídos, render-lhes-iam o papel, no mínimo, de coadjuvantes ou, quem sabe, até protagonistas.

A despeito de não encontrar ambiente favorável a esse crescimento multidisciplinar, os militares estaduais têm, às suas expensas, revisitado os bancos acadêmicos. Muitos acumularam uma considerável reserva de conhecimentos que, multiplicados, ajudariam sobremodo na construção da riqueza imaterial deste país.

Aspectos doutrinários e o controle de legalidade

Abordar-se-á a partir de agora as disposições constitucionais e infraconstitucionais que tratam do tema relativo ao exercício da atividade de magistério por militares estaduais do Ceará no ambiente público e privado. Observando, igualmente, os seus reflexos na ordem disciplinar interna.

Pelo que se deduz do seu art. 144, inciso V, §§ 6º e 7º, institui a carta política de 1988 que as polícias militares e corpos de bombeiros integram os organismos responsáveis pela segurança pública. E que constituem força reserva do Exército subordinadas aos Governadores dos Estados. Esse mesmo dispositivo defere à lei ordinária a tarefa de disciplinar as atividades de maneira a garantir-lhe eficiência. [6]

Note-se que não se preocupou o legislador constitucional em definir os critérios de gestão de pessoal, incumbindo esse encargo ao legislativo estadual.

Já no limite de nossas divisas territoriais, defronta-se com o Estatuto dos Militares Estaduais do Ceará[7]. Este, em seu art. 5º, trás uma expressão literal que, aplicada ao arrepio de sua compreensão lógica, estabelece uma situação esdrúxula na qual o militar estaria exclusivamente jungido à sua corporação. O que implicaria não poder viver de forma plena e integral dentro do seu quadro natural. Não poderia tampouco usufruir de uma vida particular, porque, assim, ser-lhe-ia reconhecido espaço para uma vida puramente miliciana: em ininterrupta atividade funcional.

O direito não pode ser enfrentado como “obra de feiticeiros”, sua objetividade deve atender aos pressupostos da razão lógica e do seu embutido finalismo. Bem como a regra da razoabilidade, para ao final atender tanto ao escopo da norma como ao seu real sentido. Logicamente que em harmonia com os fatos e o interesse social.

Sobre a melhor interpretação jurídica, assim assinala Léo da Silva Alves: “A Lei do Processo Administrativo (Lei federal nº 9.784/99) determina uma atuação de acordo com a lei e o Direito. Esse, note-se, é o primeiro critério: (...) Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, os princípios da igualdade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I atuação conforme a lei e o Direito; (Grifamos). A própria Lei, portanto, reconhece que o texto de uma lei não esgota o raciocínio jurídico. Acima dele está o direito, como um conjunto do saber. Costumamos dizer que a lei é um córrego, um rio; o direito é um oceano, onde desembocam todas as vertentes do saber jurídico”[8]

Alguns entendem que se deva modificar o texto da lei para garantir ao militar estadual cearense, o direito de ter uma vida “além dos quartéis”, entretanto, trata-se de um grande equívoco, uma vez que tal proposta reveste-se de imensa carga de antieconomicidade legislativa. Nota-se que, trazendo-se o mesmo texto legal para o campo da hermenêutica constitucional, não há qualquer impropriedade na norma citada, pois apenas recomenda ao militar estadual que cumpra seu dever funcional com devoção, sem máculas ou ranhuras, com probidade e zelo.

Não pretendeu o legislador extirpar tal categoria do convívio familiar ou do exercício de outra atividade que, além de lícita, não afronte, mesmo que levemente, os objetivos da carreira policial militar. Tal entendimento surge mais claramente na abalizada lição de José Armando da Costa, “Toda norma de direito tem, por força lógica, a sua objetividade jurídica. Reside aí a razão de se dizer que o finalismo jurídico da norma constitui outro fundamental ingrediente que impede que se dê ao seu espectro de incidência compreensão maior ou menor que a devida”. [9]

Em análise acurada do fundamento teleológico da norma, salta aos olhos que o ponto fixo a ser alcançado nada mais é que a supremacia do interesse público, a qual se deve adequar ao princípio da proporcionalidade. Como bem assinala Hidemberg Alves da Frota: “Identifica-se com os anseios por coexistência digna e harmônica entre os seres humanos, distribuição de renda equânime, inclusão do povo na tomada de decisões estatais (inclusive na formulação de políticas públicas), democratização do acesso ao conhecimento e à informação ‘igualdade de oportunidades’ e de ‘condições reais de vida’, pluralismo, (de cunho socioeconômico, político, religioso e cultural) inserção social das minorias e dos marginalizados e desenvolvimento auto-sustentável integral, pautado pelo respeito à biosfera e à integridade física, psíquica, moral e de criação intelectual dos seres humanos, bem como pela sadia ampliação dos padrões humanos de percepção da realidade e de exercício da solidariedade e da cooperação”.[10] (grifo nosso)

No campo da disciplina militar estadual cearense, dispõe-se do Código Disciplinar dos Policiais Militares e Bombeiros Militares, consolidando a interpretação que melhor se harmoniza com a deontologia castrense[11]. Deve-se compreender que os valores e deveres éticos presentes naquele dispositivo legal se prestam à máxima efetividade dos princípios constitucionais, sob pena de ferir mortalmente o estado democrático de direito.

Além de contribuir de modo claro para sustentar a ausência de afrontas legais, o referido diploma é por demais cristalino quando menciona as incompatibilidades funcionais dos militares estaduais. E, como se vê, nenhuma delas refere-se à milenar atividade do magistério. [12]

Saliente-se que, voltando-se ao texto constitucional, o mesmo entendimento ainda não cabe quando se refere às possibilidades acumulativas de cargos públicos, pois o mandamento magno não viabiliza essa contemporização.

Tal situação, de tão imprópria e desprovida de ingredientes democráticos que é, está passando por revisão nas casas legislativas[13].

Sob o manto de sábia compreensão, a matéria foi assim justificada: “Não por outra razão é que se assiste, todos os anos, a uma verdadeira fuga de cérebros das Forças Armadas, em sua grande maioria migrando para altos cargos da Administração Pública e até mesmo para a magistratura e o Ministério Público. Ora, é lógico e razoável que pessoas inteligentes e qualificadas desejem dar expressão às suas potencialidades e ser bem remuneradas por isso...Embora reconheçamos certas especificidades do cargo militar que justificam, em parte, a exigência de exclusividade, não vemos razão para a vedação de acumulação remunerada com outro cargo público de magistério, desde que haja compatibilidade de horários. A proposta não atende apenas aos interesses dos trabalhadores militares, mas, principalmente, ao interesse público. Ao possibilitar a referida acumulação, estaremos incentivando a permanência dos militares nas Forças Armadas (deixando de desperdiçar, portanto, todo o investimento do Estado na sua formação) e liberando uma extensa massa de pessoas qualificadas para o exercício do magistério no setor público (o que certamente terá efeitos positivos para a educação). Assim, contando com o senso de justiça e o espírito cívico dos nobres Pares, conclamo-os à aprovação da presente proposição, pelas razões expostas.[14]


Conclusão
Diante das razões aqui expostas, impõe-se acompanhar o entendimento de que o exercício do magistério privado por militar estadual cearense em nada afronta a disciplina castrense. Desde que obviamente sejam respeitados os critérios de ordem técnica atinentes, a saber: a compatibilidade de horários e a natureza do conteúdo pedagógico.

Quanto à possibilidade de acumular os cargos públicos de policial militar e de magistério, resta, pois, aguardar-se a manifestação derradeira do Congresso Nacional.

Sob o ponto de vista sociológico, pode-se afirmar que a atividade que auxilia na construção do saber jamais poderá sofrer inflexões negativas. Muito pelo contrário, deve ser aplaudida, pois que eleva os valores das instituições ao invés de afrontá-los. E, portanto, deve ser fomentada em todos os níveis da administração pública.


Fortaleza, 14 de dezembro de 2009.


Notas:

[1] Cas.tren.se - Relativo a classe militar – Miniaurélio. 6ed.

[2] Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar.

[3] Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar.

[4] Lei nº 13.729, de 11 de janeiro de 2006. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares Estaduais do Ceará e dá outras providências.

[5] Lei nº 13.407, de 21 de novembro de 2003. Institui o Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará,

[6] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...)
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...)
§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.

[7] Art. 5º. A carreira militar estadual é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades e missões fundamentais das Corporações Militares estaduais, denominada atividade militar estadual.

[8] ALVES, Léo da Silva. Ajustamento de Conduta e Poder Disciplinar. v2.,p.102

[9] DA COSTA, José Armando. Incidência aparente de infrações disciplinares. 2.ed., p.123.

[10] DA FROTA, Hidemberg Alves. O princípio tridimensional da proporcionalidade no direito administrativo: Um estudo à luz da principiologia do direito constitucional e administrativo, bem como da jurisprudência brasileira e estrangeira. 1.ed., p. 43.

[11] Art. 6º. A deontologia militar estadual é constituída pelos valores e deveres éticos, traduzidos em normas de conduta, que se impõem para que o exercício da profissão do militar estadual atinja plenamente os ideais de realização do bem comum,... (grifo nosso)

[12] Art. 8º. Os deveres éticos, emanados dos valores militares estaduais e que conduzem a atividade profissional sob o signo da retidão moral, são os seguintes: (...)
§ 1º. Ao militar do Estado em serviço ativo é vedado exercer atividade de segurança particular, comércio ou tomar parte da administração ou gerência de sociedade empresária ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista, cotista ou comanditário. (...)
Art. 13. As transgressões disciplinares são classificadas, de acordo com sua gravidade, em graves (G), médias (M) e leves (L), conforme disposto neste artigo. (...)
§ 1º. São transgressões disciplinares graves: (...)
XX - exercer, o militar do Estado em serviço ativo, a função de segurança particular ou administrar ou manter vínculo de qualquer natureza com empresa do ramo de segurança ou vigilância (G);
XXI - exercer qualquer atividade estranha à Instituição Militar com prejuízo do serviço ou com emprego de meios do Estado ou manter vínculo de qualquer natureza com organização voltada para a prática de atividade tipificada como contravenção ou crime (G);
XXII - exercer, o militar do Estado em serviço ativo, o comércio ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade empresária ou dela ser sócio, exceto como acionista, cotista ou comanditário (G);

[13] PEC Nº 08, DE 2009 - Altera o art. 142, § 3º, inciso II, da Constituição Federal, para permitir a acumulação de cargo militar com outro cargo público de magistério.
Art. 1º O inciso II do § 3º do art. 142 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 142 (...)
§ 3º(...)
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, salvo de magistério, será transferido para a reserva, nos termos da lei; (grifo nosso)

[14] Extraído da Justificativa para apresentação da PEC nº 08 – Senador Mozarildo Cavalcanti