terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O RECOLHIMENTO TRANSITÓRIO À LUZ DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO.

Francisco Teógenes Freitas Hortêncio
Bacharel em Direito

Em defesa dos direitos individuais, para não serem tratados de maneira indigente.

Todo homem nasce livre, e ao fazer por onde desaparecer ou mitigar esse direito divino, e por isso sagrado, sofrerá as conseqüências cerceadoras oriundas das leis.

Em nome da harmonia social que enseja as mais elevadas aspirações de uma paz reinante entre os cidadãos do mundo, essa liberdade há que ser respeitada na medida em que se obedeça aos ditames legais, morais e éticos de uma comunidade.

A liberdade plena, característica do estado natural do homem, teve que passar por um processo de relativização para que os direitos individuais pudessem sobreviver à sanha dos mais fortes e assim evitar que os indivíduos se conflitassem e se auto-eliminassem, uns sobrepondo-se a outros.

O homem se viu obrigado a abrir mão de certos direitos, até então absolutos, sujeitando-se a um acordo coletivo de respeito mútuo em prol de uma convivência suportável, com o intuito de manter outros invioláveis.

Nesse sentido José Armando da Costa diz que:
“Com o surgimento do contrato social – que opera a transformação da sociedade natural em comunidade politicamente organizada – o homem, na concepção de Rousseau, perde a liberdade natural e ganha a liberdade civil. Esta sofre derrogações de índole publicística, a fim de ajustar-se às aspirações da vida em coletividade; enquanto aquela desconhece qualquer tipo de golpeamento.” (1) .
Com esse novo panorama a liberdade deixou de ser absoluta para tornar-se regra com exceções a exigir que as condutas transgressivas se ajustassem aos padrões legais.

A lei é a fonte que estabelece e legitima essas derrogações, assim como assegura a inviolabilidade do direito natural de ir e vir.

Surgindo a necessidade da medida excepcional de impor limites à liberdade de locomoção, tal efetivação deve ser filtrada na ponderação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

A lei visa também imunizar o ato restritivo de liberdade da possível contaminação das discricionariedades administrativas que muitas das vezes, ao transpor a moldura desenhada pela oportunidade e conveniência, chega a beirar o arbítrio.

Inadmissível é aceitar que uma medida excepcional e odiosa como é o cerceamento da liberdade fique sujeita ao humor ou as convicções de idéias preconcebidas de quem é competente para decretá-la.

Quanto a isso, advertiu Cesare Beccaria:

“Um erro tão comum quanto contrário ao fim social, que é o sentimento da própria segurança, consiste em deixar ao magistrado executor das leis o arbítrio de prender um cidadão... a prisão é uma pena que, por necessidade e diversamente de qualquer outra, deve preceder a declaração do delito.” (2)

Isso reforça a imprescindibilidade de existir algo concreto como, e.g, um delito ou algo congênere cuja reprovação legal possibilite aplicar à medida restritiva, não com automatismo, mas como decisão ponderada e excepcionalmente necessária.

Nessa linha de pensamento, Fernando da Costa Tourinho Filho diz que:

“O juiz deve ser prudente e mesmo avaro na decretação da prisão provisória. Há alguns perigos contra os quais deveriam premunir-se todos os juízes, ao menos os de bem: a) o perigo do calo profissional que insensibiliza. De tanto mandar prender há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. Fazem aquilo como ato de rotina... b) o perigo da precipitação, do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erro; c) o perigo do exagero que conduz o juiz a transformar suspeitas vagas em indícios veementes.” (3)

O mandamento inscrito no art. 5º, LVII, na Carta Magna da República do Brasil proclama que todos são inocentes até que se prove o contrário, avalizando o direito à liberdade como pressuposto fático e jurídico de um Estado de Direito Democrático.

Prender alguém é ato da mais alta seriedade e requer medida motivada nos fatos e justificada na lei. Isso em decorrência da prática de delito penal ou de transgressão disciplinar castrense. Essa decisão deve ser esculpida no devido processo legal, com a abrangência das garantias individuais a ele inerentes.

Ressalte-se que, mesmo respondendo a processo penal ou administrativo, ergue-se em proteção do acusado o escudo da presunção de inocência. Requisito este que já vem de há muito regulado no art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

“Todo homem é presumidamente inocente até ter sido demonstrada a sua culpabilidade; se indispensável prendê-lo, qualquer rigor que seja necessário para atingir este fim deve ser severamente reprimido pela lei.”(4)

O que tem relevo nesse princípio é a orientação para que o respeito à dignidade humana deva prevalecer na relação estrutural de desigualdade entre Estado e Indivíduo.(5)

A necessidade das prisões provisórias (processuais) se verifica no curso de um processo legal. E desde, obviamente, que haja indícios de autoria e materialidade, aditivados com o periculum in mora. Este evidenciado em face da ineficácia da persecução penal e a incerteza da aplicação da pena em face de interferência do acusado.

De acordo com a doutrina, são taxativamente consideradas medidas coercitivas provisórias: a prisão em flagrante delito, a prisão preventiva, prisão temporária, prisão resultante de sentença de pronúncia, prisão resultante de sentença condenatória recorrível.

O artigo 22º, inciso I da Constituição Federal diz que:

“Compete privativamente à União legislar sobre:

“I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico espacial e do trabalho.” (grifou-se)

Daí a razão de serem as prisões provisórias da alçada exclusiva da legislatura federal. Medidas estas que encontram assento tanto no código penal, quanto no processual penal, bem como em leis esparsas, desde que jorrem da mesma fonte legislativa.

Devido a isto, impõe reconhecer como prescindível a existência do artigo 26º da lei 13. 407/03 – Código Disciplinar da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (6) - por se tratar de dispositivo com claro viés penal, concorrente com a legislação federal, de efetivação acessória sem a existência de um processo principal que a justifique.

Esse dispositivo, ao prevê a possibilidade do recolhimento transitório, instituto que inova o rol taxativo das espécies de prisões processuais, faz exsugir o perigo de ilegalidade pela inobservância da independência das instâncias penal, civil e administrativa.

Eis em que consiste o Recolhimento Transitório do servidor militar estadual previsto no art. 26º da Lei 13.407/03, vebis caput:

“O recolhimento transitório não constitui sanção disciplinar, sendo medida preventiva e acautelatória de ordem social e da disciplina militar, consiste no desarmamento e recolhimento do militar à prisão, sem nota de punição publicada em boletim, podendo ser excepcionalmente adotada quando houver fortes indícios de autoria de crime propriamente militar ou transgressão militar e a medida for necessária.”

À medida que se diz acautelatória fala que o militar estadual é recolhido à prisão sem nota de punição publicada em boletim, ou seja, sem exaurir o devido processo legal, com as garantias do contraditório e de ampla defesa, simplesmente porque ele inexiste a época da restrição.

Jayme Walmer de Freitas (7) leciona que uma das “características da prisão cautelar é a de acessoriedade por destinar-se ao resultado de outro processo”.

José Frederico Marques (8) esclarece que as providências cautelares se ligam, instrumentalmente, ao processo cujo resultado visa garantir.

A doutrina é pacifica quanto ao valor acessório das prisões cautelares, do seu efeito prático, legal e estritamente necessário ao andamento de preexistente processo principal. É um auxilio de caráter excepcional que visa inibir atitudes contrárias a apuração do ilícito e/ou aplicação da reprimenda correspondente.

De acordo com o princípio lógico de que o acessório segue o principal, não podem as prisões provisórias servir de atropelo ao devido processo legal, vilipendiando o direito de defesa. Seu objetivo é dá vazão às estritas necessidades do processo perscrutório. Transpor essa exigência legal transformar-se-á em antecipação da pena, em instrumento de vindita, em abuso de poder.

O recolhimento transitório tido como medida cautelar deve estar vinculado a um processo principal, caso contrário apresentar-se-á paramentado com as insígnias do oportunismo com o fim em si mesmo, tornando-se potencialmente odioso o encarceramento do militar como solução imediata a priorizar a Corporação em detrimento da pessoa humana e do devido processo legal.

O tratamento dado, até então, a esse instrumento acautelatório destoa de um dos principais fundamentos do Estado democrático de direito que é a dignidade da pessoa humana, cuja essência é respeitar o jus libertatis individual.

A inexistência de ordem judicial e de flagrante delito para o carcer ad custodiam também é patente. E aí, como justificar a castração do direito ambulatorial, “por cautela”, em decorrência de ato administrativo que de regra se pauta na discricionariedade, com efetividade fora do devido processo legal?

No caso de haver indícios de crime militar, usurpa-se a competência da Justiça Militar Estadual de decretar a prisão provisória – recolhimento transitório - pelo simples fato de inexistir requisição atinente, agindo ao alvedrio.

Exige-se tão somente, após a consumação da restrição de locomoção, a comunicação de sua efetivação àquele juízo o que o coloca na posição de marido traído, sendo o último saber, talvez por ser esse instrumento uma inovação das prisões processuais.

Ora, indícios são meras fumaças de um bom direito, e o que prevalece, até transitar em julgado a sentença condenatória, é a presunção de inocência.

O que dizer quando esses indícios forem de crimes de menor potencial ofensivo? Cujos autores, após lavrado o respectivo Termo Circunstanciado de Ocorrência, são liberados pela autoridade policial?

O absurdo se potencializa quando medida tão acre se dá sob a alegação de preservar o andamento das investigações para a sua correta apuração, sem dizer a que instrumento processual se prende.

Pois se estiver atrelada a algum inquisitório penal a medida adequada para resguardar o bom andamento do inquérito são as prisões processuais – preventiva ou temporária - cuja competência em decretá-las é do Poder Judiciário.

Por outro lado se a investigação se vincular a procedimento administrativo, tal medida se mostra eivada de desproporcionalidade e ilegalidade, face ao seu cunho penal.

Diz que o Recolhimento Transitório se dá em decorrência também da preservação da segurança pessoal do militar e da sociedade, em razão do militar: i) mostrar-se agressivo e violento pondo em risco a própria vida e a de terceiro ou ii) encontrar-se embriagado ou sob ação de substância entorpecente.

Mostrar-se agressivo ou violento pondo em risco a própria vida tem como prejudicado apenas quem assim se comporta, não havendo razão para aplicar-lhe medida de cunho penal em virtude do princípio da alteridade que veda a incriminação de conduta meramente subjetiva ou que não ofenda a nenhum bem jurídico. Encontrar-se embriagado ou sob efeito de substância entorpecente, também em decorrência do princípio da alteridade, impede o Direito de castigar o comportamento de alguém que esteja prejudicando apenas a sua própria saúde e interesse, pois o bem jurídico tutelado é sempre o interesse de terceiros.

A lei 11.343/06 – lei antidroga – traz no seu art. 4º, inciso I, que um dos princípios do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas se pauta no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade, e para isso aboliu a previsão de pena privativa de liberdade para o usuário. Essa lei não reprime penalmente o vício, pois não tipifica a conduta de “usar” (9), de acordo com Fernando Capez.

Alcoolismo e/ou qualquer dependência química é matéria de saúde pública e não de reprimenda draconiana como a que estipula o art. 26º da lei 13.407/03.

Antes de se optar pelo encarceramento, mesmo que provisório, sob a alegativa de proteção do militar, deveria se combater as causas com acompanhamento psicossocial, com condições de trabalho menos estressante.

O limite de permanecer recolhido transitoriamente é de 05 dias, mesmo lapso estipulado para a prisão temporária - lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989 – contudo os requisitos que a justificam estão vinculados a prática incontestável de crime.

Tal posicionamento tem por objetivo: primeiro, chamar a atenção da importância de se vê o Direito como um sistema, cuja existência de mandamentos legais esparsos se obriga a filtrá-los nos princípios constitucionais, principalmente os da razoabilidade e proporcionalidade.

Segundo, questionar o fato de se deixar nas mãos de superiores hierárquicos decisões de intensa complexidade interpretativa quanto ao momento e a necessidade do recolhimento transitório, em virtude de se confundir com a prisão preventiva e/ou temporária.

Terceiro, o fato de a simples condição hierárquica ser insuficiente para legitimar a competência do ato em análise, principalmente quando o superior se mostra diletante no conhecimento de direito material e processual.

Assim, somos da opinião que a manutenção da disciplina não precisa se valer do recolhimento transitório com a roupagem dada pelo artigo 26 da lei 13.407/03, por ser instrumento que cria mais uma prisão provisória, sem caráter acessório de um processo principal e o pior, com o fim em si mesmo.

Notas:

1 Da COSTA, José Armando. Estrutura Jurídica da Liberdade Provisória, 2ª. ed. Brasília-DF: Brasília Jurídica, 1997, p. 15.

2 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Lúcia Guidicini. 2ª. Ed. 6ª. Tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 102-103.

3 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Prática de Processo Penal. 30ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 410.

4 DIREITOS decretados pela Assembléia Nacional Francesa em agosto de 1789.

5 DE FREITAS, Jayme Walmer. Prisão Temporária. 2 ed. São Paulo: Saraiva,2009. P, 15.

6 CEARÁ. Lei N° 13.407, de 21 de novembro de 2003. Código Disciplinar da Polícia Militar do Ceará e do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará.

7 DE FREITAS, Jayme Walmer. Prisão Temporária. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p 39.

8 MARQUES, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Campinas – SP: Bookseller, 1997, v.2, p. 32.

9 CAPEZ, Fernando. Legislação Penal Simplificada. 7ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 202.

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